Archive for março \29\-03:00 2009

h1

I am trying to break your heart

29.março.2009

Fico pensando desordenadamente em tudo o que não consigo de alguma forma pensar. Algumas coisas como os quinze minutos que uma pessoa demora pra chegar na minha casa. Ou os quinze minutos que eu demoro pra chegar em mim.

Estendo as pernas pra pensar com mais conforto e me incomodo com a demora. O menino da padaria me disse quinze minutos. Já faz quinze minutos que cheguei até mim, isso quer dizer que o pão atrasou. Isso quer dizer também que faz tempo que estou sozinho dentro de mim.

Levantei pra fazer um suco, mas não tenho açúcar. O menino da padaria não chega, assim como a música não chega na cozinha. Estou com o som ligado faz dias, os vizinhos ainda não reclamaram. Espero a campainha tocar no ritmo do piano da música que não consigo ouvir.   Se a campainha tocar mais rápido vou desconfiar que pode ser você e aí não abro.

Você tem as chaves, mas me disse que acha uma grande invasão abrir as portas sem tocar a campainha. Eu acho uma grande invasão tocar em mim sem antes ouvir meus discos. Acho também uma grande invasão tocar nos meus discos.

E acho uma invasão imensa essa demora do menino da padaria. A qualquer momento você pode chegar. Feito eu que cheguei em mim, fresco e quente, feito esse pão que não chega nunca.

Saí debaixo das cobertas com um calor filho da puta, suando, corri pra porta, o som no mudo, abri a porta e era o menino da padaria.

Não, não era você.

Dei a gorgeta e ele disse: “Que bonita música, seu Luiz”. Bonita música é o caralho. Não me interessa. O som da campainha não toca mais rápido que o piano. Me devolve a gorgeta, isso não me interessa.

h1

Além do Ponto

13.março.2009

Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chhuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse um táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos. Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pêlos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d’água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer que ele soubesse que eu era eu, encharcado naquela chuva toda que caía, caía, caía e tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum, ou parar para sempre ali mesmo naquela esquina cinzenta que eu tentava atravessar sem conseguir, os carros me jogando água e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia mas não devia, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, que me abriria a porta, o sax gemido ao fundo e quem sabe uma lareira, pinhões, vinho quente com cravo e canela, essas coisas do inverno, e mais ainda, eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar parado, pois tem um ponto, eu descobria, em que você perde o comando das próprias pernas, não é bem assim, descoberta tortuosa que o frio e a chuva não me deixavam mastigar direito, eu apenas começava a saber que tem um ponto, e eu dividido querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável dele me esperando quente e pronto.

Um carro passou mais perto e me molhou inteiro, sairia um rio das minhas roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhado, sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão perto que uma quentura me subia para o rosto, como se tivesse bebido o conhaque todo, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pele fria, começava a escurecer, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama larga com muitos cobertores, e foi então que escorreguei e caí e tudo tão de repente, para proteger a garrafa apertei-a mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e além da água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava encharcada de conhaque, como um bêbado, fedendo, não beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, escondendo o caco do dente, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele chamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta.

Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorri mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca.

Caio Fernando Abreu. In: Morangos Mofados.

h1

Ligações

11.março.2009

Três ícones verdes e três azuis, é só isso que sei nesse exato momento sobre a minha vida. Estou totalmente protegida, exibida e expansiva. Os cadarços em cima da mesa parecem me prender aqui. O telefone não toca, mas quem tem que ligar sou eu.

De um em um segundo a bola gira me afirmando que estou bem, que posso seguir adiante, eu estou bem me diz a bolinha com um “a” minúsculo desenhado.  Dentro da bolsa vermelha mais algumas bolinhas de todas as cores e do mesmo tamanho, padronizadas feito esse dia-a-dia de cotidiano.

Realmente não se deve disperdiçar a última latinha de coca-cola do seu deserto. Ainda que eu não entenda essa expressão e ache que em meio ao um deserto eu preferiria um grande copo de açaí ou uma garrafa de água de côco. Corro o risco de parecer extremamente saudável e não sou.

Pego no telefone e ligo. Toca. Toca. Toca. Alguém atende.

E depois disso algumas músicas novas que me fazem lembrar novas velhas pessoas. Alguns títulos repetidos e eu querendo alugar minha cabeça pensante pro primeiro assassino que aparecer na minha frente. Não é que pensar me canse, ficar cansada é que me faz pensar. E pensar demais.

h1

Miolo

01.março.2009

de saudades de você, meu amor… Morrendo. Mas vai passar. Sei que vai passar. No fim das contas a gente sobrevive. E isso é o pior de tudo. Eu sobrevivo sem você, você sobrevive sem mim. Um dia a gente se vê, não se mata mais e nem dói. E é aí que começa a doer de verdade. Vou te abraçar, você vai ter o mesmo cheiro, o mesmo calor, mas meus sentidos não vão mais enlouquecer de você. E é aí que enlouqueço mais. Sua altura vai ser a mesma, seu rosto vai encostar exatamente no mesmo espaço da curva do meu pescoço. Tudo exatamente igual. Menos nós dois. Seus gestos exatamente no mesmo espaço largo de você, invadindo exatamente os mesmo lugares inabitáveis de mim, mas não vou ocupar mais nenhum centímetro do meu corpo. Vai ser dolorido não ter um espaço largo cheio de você, porque não vai doer mais, meu amor.

(Quase te ligo, passo a mão no meu telefone e descubro que não tenho mais o seu número).

Sobrevivo a cada dia, sobre os restos de você que ficaram na minha roupa. Basta sacudir que tudo cai. Mas não, não me sacudo porque a saudade paralisa. Nesse eterno clichê da vida. Farelos do que a gente teve, que, na verdade, não passou de uma toalha cheia de restos da nossa outra vida. A mesa posta, os copos sujos e sua presença ainda circula nas colheres cheias de açúcar + café. Os passos leves, aveludados, seu olhar aveludado arrepiando toda e qualquer expectativa que possa existir. Me passa o adoçante. Me passa seus dedos.

Morrendo de saudades de você eu escrevi um nome na parede com o miolo do pão que ficou no canto da mesa. Morrendo de saudades de você eu me escrevi no rótulo da garrafa de suco com a faca caída no chão.

Seu pescoço na mesma altura dos meus olhos cheios de não te ver há mais de uma semana. Há mais de um mês. Seu pescoço na mesma altura da minha voz estridente reclamando dos meus olhos cheios de não te ver mais. Seu pescoço tem a mesma altura dos meus gritos.

Não vou te abraçar. Meus braços vão continuar escorrendo, derretidos de distância. Não vou falar mais na mesma altura do seu pescoço. Não vou mais sentir dor. Não vou mais sobreviver você aqui. Tudo porque hoje eu acordei morrendo